sexta-feira, 30 de março de 2012

O que é ser?

Um dia, houve um rapaz que acordou e viu que não sabia quem era. Sabia o seu nome, sabia o nome dos pais, sabia a idade, sabia onde morava. Mas não sabia o mais importante. Qual era a sua cor preferida, a sua comida preferida, a sua música preferida. Que é o mesmo que dizer que não sabia nada. Decidiu ir perguntar aos pais. Chegou à sala e viu que estava vazia. Quer dizer, tinha uma consola, uma tv, algumas cadeiras perto de uma mesa, um sofá, muita porcaria no chão. Isso lembrou-o que os pais não viviam com ele. Disso ele recordava-se, mas era complicado recolher aquela lembrança. O pai tinha um problema de saúde grave. Tinha um défice extremo na compreensão do verbo fidelidade. A mãe, embora sem défices, perdia aos poucos o sentido da palavra felicidade. Voltou a esquecer-se deles. Era mais fácil e tinha uma tarefa mais complicada em mãos.

Decidiu sair de casa e procurar pela rua quem era. Procurou nos caixotes do lixo perto do seu prédio. Encontrou muita coisa. Mas os preservativos continham sémen que não era o seu. As cascas de banana não tinham sido deitadas fora por ele. As caixas enormes de electrodomésticos não condiziam com o que tinha em casa. Os desesperos monetários, os desempregos crónicos, os oportunismos burocráticos, nada disso lhe pertencia. Parou de vasculhar o lixo quando sentiu um aroma familiar. Andou no seu encalce. Sentiu um caminho abrir-se entre o cinzento da rua. Daquilo que se recordava, aquela rua era colorida. A estrada era amarela. Os postes azuis. As paredes dos prédios verdes. Os passeios vermelhos. As pessoas que caminhavam nela eram como sortidos de bombons, de vários tamanhos e feitios. Compreendeu que provavelmente seria uma memória falsa, daquelas que aparecem quando temos a esperança de que aquilo que vemos é apenas uma mentira cerebral. Apenas via vários tons de cinza. Uns mais escuros, outros mais claros, mas todos cinza. Nem preto, nem branco. Os tamanhos, os cheiros, as texturas. Nem branco, nem preto. Tudo cinza.

Chegou ao parque de onde via o cheiro. Mas não existia lá nada que pudesse ser cheirado. Apenas um homem com uma máscara. Pensou que o cheiro talvez fosse daquele mascarado. Perguntou-lhe, és tu que cheiras bem? Não, esse cheiro é uma alucinação natural de quem se esqueceu de quem era. Como sabes isso? Eu sei tudo, sou um feiticeiro. Senta-te aqui à minha frente, vou fazer-te uma magia. Não posso, tenho que encontrar quem eu sou. Porque tens tanta pressa? Imagina que sou um importante empresário? Posso estar a faltar ao emprego e arriscar-me a ser despedido. Não o és. Como sabes isso? Já te disse, sou um feiticeiro, sei tudo. Agora senta-te aqui à minha frente, vou fazer-te uma magia. O cheiro, entretanto, desapareceu. Foi o suficiente para ele o considerar realmente uma alucinação e ganhar confiança no feiticeiro. Sentou-se à sua frente. O feiticeiro puxou de umas cartas. Elas todas agrupadas pareciam uma só carta. O feiticeiro movia-as de mão para mão, manipulando-as a seu bel prazer. Ora apareciam na orelha, ora apareciam na manga, ora apareciam na boca, ora apareciam no chão. Gostas dos meus truques? Não, não vejo magia nisso, para mim é só cartas a passarem de um lado para o outro. O que tem isso de mágico? Tem muito, é preciso ter-se poderes especiais para manipular desta forma o tempo e o espaço. Se consegues manipular assim o espaço e o tempo, então faz-me sentir seguro. Isso eu não sei fazer. Então faz-me sentir feliz. Também não consigo. Então tu não fazes magia, fazes truques. E isso qualquer um consegue fazer.

Levantou-se para ir embora, mas o feiticeiro agarrou-o pelo braço. Ele não gostou disso e deu-lhe um safanão no braço. O casaco do feiticeiro abriu-se e mostrou um peito nu, feito de cabos eléctricos, de chips, de ferro. Que raio és tu? Já te disse, sou um feiticeiro, todos os feiticeiros são assim. E garanto-te que, com treino, posso conseguir fazer-te sentir feliz e seguro! Sabes o que significa ser-se feliz? Sei, significa sorrir e rir! Sabes sequer o que é amar? Depois de ter dito isso perdeu-se no seu pensamento. Não se lembrava de alguma vez ter ouvido aquela palavra. Enquanto procurava na sua cabeça o seu significado, não ouviu o feiticeiro a dizer que amor era ter as pessoas para si e elas não quererem mais ninguém do que nós próprios. Levantou-se, demasiado intrigado com aquele dilema para se preocupar com o feiticeiro. Ele ainda lhe gritou, não procures o amor! Isso rouba-nos a pele e as entranhas e ficamos sem nada!, mas de nada valeu, ele já não o ouvia. Nem sequer reparou que, ao começar a correr sem direcção, derrubou a máscara do feiticeiro, mostrando outra máscara por detrás da primeira. Enquanto corria, fazia um esforço cada vez mais árduo para perceber que raio era isso do amor. Esse esforço foi todo em vão, porque eventualmente perdeu a concentração. O cheiro tinha voltado, mais forte que nunca.

Olhou para a sua esquerda. O cheiro vinha do cabelo de uma mulher. Perguntou-lhe, és tu que cheiras bem? Não sei, não me consigo cheirar. Ele ficou paralisado. A voz dela fez com que ele parasse no tempo. Percebeu várias coisas. Percebeu que estava despido. Percebeu que não tinha conhecimentos inteligentes para contrariar aquela afirmação. Percebeu que não se conseguia mexer muito. Percebeu que a palavra amor nunca lhe tinha parecido tão real como agora, e no entanto ainda não sabia o que queria dizer. Depois de um tempo que na cabeça de qualquer um teria sido eterno, não tivesse sido só um segundo, voltou a falar. Desculpa estar nu. Não te preocupes, não consigo ver essas coisas. Então que vês tu? Apenas aquilo que é importante. Então que vês de mim? Vejo dois olhos, uma boca, um nariz. Vejo também dois braços, duas pernas, um tronco. Consegues ver quem eu sou? Não, não te conheço, como posso saber que o que vejo és tu? Eu também não sei se é, hoje acordei e esqueci-me de quem era. Vou-te contar um segredo, mas promete-me que não contas a ninguém. Prometo. Eu também não sei quem eu sou. Podemos procurar os dois? Eu não procuro quem sou, não acho que seja importante. Então o que é para ti importante? Isso não te digo já, tens que vir comigo, ouvir-me, aturar-me, suportar-me, agarrar-me, deitar-me, acordar-me, animar-me, entre outras coisas. Só o faço se o fizeres igualmente para mim. Temos um acordo então. Então foram os dois embora. O cheiro continuou a vir do cabelo dela. Ele não reparou que ela, à medida que falava, ia perdendo roupa, até ficar tão nua como ele. Não era isso que lhe importava de qualquer das formas.

A única coisa que lhe importava agora era saber o que era aquele pulsar tão forte que dava vontade de vomitar no seu peito. Não o deixava concentrar-se na procura do sentido da palavra amar. Mas também não o preocupava. Continuaram a caminhar, até desaparecerem naquela rua cinza. Um traço de cor ficou no chão, muito pequeno, a marcar a sua caminhada. No dia seguinte já estava cinza de novo. Enquanto caminhou com ela, nunca mais quis saber quem era. Interessava-lhe apenas saber quem ela era. E assim viveu até ter parado de respirar. Nunca soube quem era ou o que significava amor. Mas nunca mais conseguiu viver sem o pulsar no peito que lhe dava vontade de vomitar.

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