sexta-feira, 31 de maio de 2013

Coaching.

A cada passo que vou dando, mais tempo perco em negar-te. Não a tua existência, mas a tua importância. Relativizo-te, catalogo-te, guardo-te num armário onde se guardam os pertences que já excederam a sua data de validade. Durante muito tempo consegui. Só saías do armário quando precisava de te ter por perto. Conseguia controlar este crescer que maquilhei como insegurança. Defeito. Má-formação, doença até. Agora já não consigo controlar mais. Por muito que tente olhar-te de cima para baixo, pôr-me de bicos nos pés, ignorar os teus mais pequenos pormenores, não pensar na tua respiração nos meus lábios, sinto-me sempre pequeno perto de ti. Consegues despertar em mim as maiores inseguranças, os suores mais frios, os desejos mais dolorosos. E não gosto de me sentir assim. Por isso, desta vez, não te irei dar as minhas tristezas, mas as minhas forças. As minhas qualidades. E talvez, um dia, uma tarde, uma hora, um segundo, um momento, não sejamos uma recriação, mas um nascer. Não interessa quando, como, nem quanto. Só interessa o acontecer. Porque a partir daí, reconhecerás a minha presença. Espero que aí, não seja tarde demais. Para ambos.

domingo, 26 de maio de 2013

Equilibrismo.

Há dias em que não é necessário existir um plano anterior para concretizar o desabafo literário. Julga-se no limiar das suas potencialidades, caminhando novamente na luz que caracteriza a fé humana. Tão rápido como o último suspiro dum corpo moribundo, assim é o grito que nos arrasta de volta para a caverna, não do desconhecimento, mas da verdade escura, sem alegria, sem energia, sem nada. Pura anti-matéria criada dos desejos mais obscuros de um coração desistente. Assim se passeia a alma dolorida, como um equilibrista, arriscando o seu orgulho e o seu talento num passeio arriscado, onde o resultado final não é necessariamente gratificante, mas permite uma maior tranquilidade do que a queda. Apesar de muitas vezes existirem percalços no percorrer da corda bamba, naturais  para quem está habituado a estas manobras. Ao cair tenho evitado a Queda. Porque cair com rede não é o mesmo que cair no chão. E a rede está a ficar um pouco roída, flácida, fraca, corroída - está a desaparecer. Neste momento já não procuro fazer sentido. Não procuro a pertinência de palavras somadas como uma fórmula matemática, de forma a fazer suspirar o mais rancoroso dos corações. Procuro apenas equilibrar-me, de um lado para o outro, até a viagem acabar. E quem assim anda sabe que o que conta não são os erros ortográficos, de sintaxe, de julgamento, as vinganças, os constantes deitar-abaixo para compensar a mágoa, as constantes lembranças de uma imperfeição que orgulha quem te sentia invencível. O que conta é chegar até ao fim sem dar a Queda. Aquela sem rede. Que tantas vezes se afigura como o fruto mais apetecido. Quem se equilibra, sabe disso. Os que não compreendem, então não andam na corda bamba. Mas dá-lhes jeito que assim se pense.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

"Miguel", momento nº 14.

As portas abriram-se.
O sol entrou,
Carismático e brilhante,
Iluminou a mobília
Que só conhecia pó.

Não gritou, porque o Sol
Não sabe gritar.
A sua luz quente
Foi o suficiente para
Abrir a jaula onde pus o coração.

Cá fora, já não era o Sol.
Eram olhos, aos milhares.
Humanos, imaginados,
Medos e frustrações.
Eram olhos, aos milhares.

E de repente desapareceram.
Um momento, um respirar,
Um conjugar de almas,
Eu e tu no plano imaginado,
A representação de nós.

E vi que o coração não aguentou.
Derreteu-se num rio doloroso,
Salgado e saboroso.
Correu-me o corpo,
Lavou-me a alma,

Despiu-me os pudores,
Desabou as defesas,
Ignorou os bravados.
Deixou-me vulnerável.
Fez-me sentir vivo.

terça-feira, 21 de maio de 2013

"Sem espaço para dúvidas"

Era bom ser o topo das virtudes. Sentia-me acima de todos os comuns mortais, na minha fugaz certeza dum futuro que não saiu do abstrato. As minhas inseguranças, ficavam para quem as suportava e sofria com elas, fiel esteio dum amor escrupuloso e sedendo de sangue. Na bebedeira da paixão por mim, decidi agarrar todos os conceitos e palavras que me aquecessem o ego, que me alimentassem o corpo, que me adormecessem o espírito. Não agarrei o meu coração, deixei-o cair, perdeu-se. Mas a claridade encontrou-se e, enfim, me vi nitidamente. Gordo. Narigudo. Arrogante. Caprichoso. Mentiroso. Traidor. 

Dizem as línguas sábias que, para se encontrar um olhar cúmplice e apaixonado, é preciso olhar-se a vida de forma cúmplice e apaixonada, como se de uma velha amiga de infância se tratasse. Ironicamente, já me vi no papel do pilar de suporte e do megafone do ultraromantismo, quando muitas vezes lágrimas de desespero e de angústia povoavam quem perdia a esperança. Neste momento, a posição inverteu-se, mas com uma ligeira diferença. Não tenho a coragem necessária para admitir a minha incapacidade de me fazer feliz. Nem o quero. Outras mentes sabedoras dirão que ninguém gosta de um coitadinho. Para se ser interessante, há que ser confiante, gozão, insensível, bruto. Agora só consigo viver o papel de quem se vê fora do alcance do paradigma actual, como um pacote de leite que só fora aberto depois de passar o prazo. Invejo-te. Também queria eu ter a confiança necessária para me sentir desejado e voltar a sofrer por ter medo de confessar o que sinto.

sábado, 18 de maio de 2013

Monólogo de uma mente cansada.

É só sair de mim e observar. Está tudo igual. Diria até, sem novidades, como se toda a vida fosse o segundo que nos leva a perceber que existimos. No entanto, algo escapa. Falta. Não está, não esteve, não sei, alucino, desespero, olha, não tem explicação. Tento reflectir sobre isso. Mas com ideologias e sofismos não vou lá. Até porque são essas mesmas intelectualizações que me fizeram fugir de mim por um momento. Por isso, tento observar ao mais ínfimo pormenor o que se passa ao meu redor. E é aí que me atinge. Tudo e todos os que me rodeiam mostram uma textura diferente da minha. Será que consigo pormenorizar mais? Consigo, mas não quero. Eles estão formados por palavras. Escritas, pensadas, não fazem parte do momento. Fazem parte do outrora. Todas. As boas e as más. É hora de voltar a mim. As palavras desapareceram, como as pessoas que elas formaram. Só resto eu. Num fundo sem objectos, sem cores, sem nada. Tudo descoberto, em aberto, pronto a ser explorado. É o momento de apagar as palavras erradas, os erros ortográficos, as falhas de sintaxe. Voltar a escrever, a pintar, a criar. Fecho os olhos, e volto a sair de mim. A ilusão é mais confortável, a dor é mais aliviante, o lamento do passado é mais fácil. Sofrer por começar do zero necessita duma base corajosa, pronta a arriscar. E por agora, só consigo viver no que me prende aos conceitos com que construí a minha felicidade. Não consigo ainda viver feliz.

domingo, 12 de maio de 2013

Joker.


Basta um dia mau. Basta a teia que tu construíste durante tanto tempo ser quebrada num pequeno anel. Basta veres as tuas expectativas e sonhos pisados como uma poça de chuva. Basta um dia mau. Quando ele chega, por fim, esquece tudo aquilo a que chamavas borboletas no estômago, calor no peito, secura na garganta. Diz olá ao riso. Gargalhadas, gargalhadas e mais gargalhadas. Porque tudo não passa de uma piada, na verdade. De que vale a pena tentares encontrar nas circunstâncias e no destino justificação para te comportares como uma criança a quem te tiraram o brinquedo favorito? Vale a pena ficares tão sério por isso? Porque o teu pai enchia-te a cara de porrada ou de outra coisa? Porque descobriste que existem mentiras e traições e o Peter Pan não? Porque não encontras felicidade na máquina de produção em massa a que chamas vida? Porque descobriste que o príncipe a quem oferecias o teu coração estava à espera que te oferecesses mais abaixo? Porque não suportas aquilo que vês ao espelho e o julgamento do teu reflexo? É por isso que estás tão sério? És ridículo. É por isso que nunca deixarás de ser o húmus que habita no esquecimento colectivo de quem te conheceu. Porque te bastou um dia mau para colapsares. Porque não és como eu. Também tive um dia mau, uma vez. Mas só me deu vontade de rir. Porque é como construíres um castelo de cartas. Levas anos, mas assim que suspiras, desaparece tudo. E ficas a chorar, pelas tuas cartinhas derrubadas. Agora deves querer fazer isso mesmo. Chorar pelas tuas cartinhas. Ou então soltares a frustração de seres tão importante como um grão de areia e bateres-me. Mas não vale a pena, porque vou continuar a rir-me. Porque tu és uma piada, eu sou uma piada, tudo não passa de uma grande piada. Quanto mais depressa perceberes isso, melhor.

sábado, 4 de maio de 2013

Escala de cinzas.

Ás vezes, a recuperação dói.
Não a quem recupera,
Que por esse momento verdadeiramente espera,
Mas a quem orbita no nosso Universo,
Sem preparação para felicitar o sucesso
De uma imperfeição que já não nos destrói.

Será vista como bravado ou arrogância,
Aceitar as camadas de cinza na paleta
Com que escrevemos o nosso eu, qual caneta
Que nos desenha os contornos reais
E não as projecções ideais
De quem nos ama, com alguma intolerância.

Eu percebo. Quem ama não tolera
O surgimento de uma sombra desconhecida,
O nascer da morte que outrora fora vida,
A sucessão de erros em catadupa,
As imperfeições aumentadas à lupa.
É mesmo assim. Quem ama não tolera.

Mas porra, se para renascermos é preciso o nosso perdão,
Significa que temos de aceitar as nossas cicatrizes
E perceber que sem o negro não seremos felizes,
Não customizar um novo eu,
Um nobre cavaleiro ou um simples plebeu.
É preciso olhar para o monstro no espelho e amarmos a imperfeição.

Senão, corremos o risco do coração
Morrer insano, perdido, sofrendo com a rouquidão.