sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Misturas.

Um dia caminhava um homem pela rua. Aliás, andava, não caminhava. Se caminhasse tinha algum propósito por detrás do movimento. Este homem não. Se as pernas se moviam de forma rítmica e sincronizada não era do seu conhecimento. Era um pouco complicado até perceber se ele tinha conhecimento de alguma coisa. Os seus olhos apresentavam um brilho vago. As luzes dos candeeiros daquela noite barulhenta da copofonia iluminavam as suas íris. Mas então, seria ele uma máquina, um mutante, um produto de algum mistério científico surpreendentemente inteligente?

Não. Era apenas um homem cujo cérebro se tinha ausentado por tempo indefinido do seu crânio. Mas então por onde andava o conhecimento de si próprio? Num céu cor-de-rosa, flutuando entre montanhas de cumes rosas e florestas densas (ou não) com riachos no centro. Entre estas duas paisagens distintas figurava uma planície deserta, onde uma pequena cratera guardava pequenos animais e poeira. Decidiu continuar o caminho atravessando as florestas. Verificou que o riacho no centro desbocava numa imensa cascata, com dois braços rochosos a acompanharem a queda. De repente, sentiu calor. Muito calor mesmo. Tanto calor, que se viu livre das suas roupas, cuja existência lhe era alheia. Infelizmente, o calor piorou até. Finalmente percebeu que tinha mesmo à sua frente uma torrente de água fresca pronta para ser utilizada. Nem pensou duas vezes. Planou o mais rápido que conseguia em direcção à cascata. Mergulhou de cabeça, e o alívio do fresco transportou-o para outro plano. O da inconsciência transcendente, onde apenas se visualiza o nada que todo o ser incorpora.

Entretanto, o nada desvaneceu-se. Quando abriu os olhos, estava completamente nu, deitado numa cama com cheiro a insectos e prostituição. Por baixo de si, encontrava-se uma boa imitação de uma mulher, com algumas picadas de agulha no braço, um maço de notas na cabeceira e um rio de esperma na vagina. Reparou que a foz desse rio era o seu pénis. Foi quando percebeu que não se lembrava de absolutamente nada. Nesse dia, aprendeu uma boa lição. Decidiu nunca mais confundir vodka com água. Tomar comprimidos assim não era tão gratificante como julgara.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Estou mesmo muito cansado.

Olho para o reflexo do vidro da camioneta. O destino, já soube, mas esqueci-me. Estava a pensar em ti e perdi o sentido do que estava a fazer. Também não era importante. O importante era localizar-te nos meus pensamentos. Ver-te de novo na minha imaginação. Observar-te na minha mente. És tão bonita lá como na realidade, com a diferença de ser complicado tocar-te nos recônditos do meu ser. Mas isso não te impede de me tocares, normalmente de forma furtiva. Pelo menos suponho que assim seja, porque nunca consigo tocar-te de novo quando te sinto dentro de mim. Infelizmente, este dilema teve que ser interrompido. Voltei ao mundo real e percebi que o vidro estava molhado, por isso estar a observá-lo. Olhei para cima, em busca da chuva que provavelmente teimava em cair e deixar-me tão melancólico. Não vi fuga nenhuma, portanto voltei a olhar para o vidro e vi o meu reflexo. Aí descobri que afinal não era chuva. Eram as saudades tuas pela minha face. Limpei-as, sem as deitar fora, guardei-as de novo no meu coração e virei-me para o outro lado. O cansaço é muito, mas não é por preguiça que vou deitá-las fora amanhã. Vais voltar a ser real e a deixar-me tocar-te. Aí reciclarás as saudades que te dei e, furtivamente, quando deixar de te ver, voltarás a colocá-las em mim. E eu percebo porquê. Eu também tenho medo de te perder quando olho pelo vidro da camioneta.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Para o meu amigo Coelho, muito amor.

Obrigado pelo passe mais caro,
Para a injustiça tens faro,
A saúde piora e assim eu não saro
A vontade que eu não paro
De contaminar o teu reinado
De ditador dissimulado,
Burlão mascarado,
Masoquista entusiasmado
Com a dor do proletariado,
Que te agradece com agrado
A forma como nos tens enterrado.

Amigo Passos és um camarada,
Por ignorares a frente irada
Que se cansa da tua perdição
E longe de ti procura a salvação!

Obrigado pelo descrédito da juventude,
Que é vista por ti com quietude,
Connosco não queres ter uma atitude,
Duvidas que um dia isto tudo mude,
Mas não te esqueças que os oprimidos
Invariavelmente se tornam unidos,
Vivendo até serem ouvidos,
Correndo até serem temidos,
E aquilo que um dia foram gemidos
Podem ser o inferno nos teus ouvidos!

Amigo Passos és um porreiraço,
Dizes-te receoso do dinheiro em maço
Quando ele é o teu melhor amigo,
Aquele que anda sempre contigo.

No fim de contas eu sou ninguém
Enquanto que tu és alguém,
Que é ouvido por outrem,
Conhecido até ao além.
Mas então vou-te apresentar
O velho que andas a roubar
E que morre sem se alimentar,
A criança que quer brincar
E o futuro andas a prejudicar,
O jovem que quer estudar
E os livros andas a queimar,
O doente que se quer curar
E a sua medicina usas para te drogar,
O país que se quer levantar
E que lentamente tentas matar,
O povo que se quer salvar
E que queres agrilhoar,
O ninguém que te está a avisar
Mas para o qual te estás a cagar!

Amigo Passos, és um bacano,
Por incluíres os teus amigos no teu plano,
Mas para te falar do fundo do coração,
Contigo, até o inferno parece a Salvação!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Dia dos finados.

No dia 1 de Novembro, estava um dia tristonho. Nada nele mostrava alegria. As cores fugiram para as suas tocas, deixando cá fora o vazio e a solidão visual. Senti algo a cair na minha cabeça. Algo gelado e no entanto a arder de sentimento. Era a tristeza em estado líquido. Naquele parque de estacionamento, no lugar de carros estacionaram corpos. Não estavam mortos, apenas não tinham nada. As bolas de vidro que faziam o lugar de olhos esperavam algo que as fechasse. Andavam como bits num sistema informático. Sem vida, programados, sem erro, sem variação, sem vida.

No meio disso havia os oportunistas. Saídos dos lugarejos de ignorância auto-proposta em que se refugiam, arrecadavam o metal. Estremeciam e resplendiam de forma doentia ao conseguir as moedas de gorjeta. Notei que o único que de verdade trabalhava o ano todo era o que não participava. Os oportunistas não o iriam deixar roubar os trocos. O fumo negro saía da torre branca. Torre que guarda o fim dos outros. Daqueles que já passaram por nós. dos que completaram a corrida e ganham como prémio a incineração. Entretanto, no geral ignorado, caminho eu. Não como um qualquer Messias que anuncia a chegada de Jesus. Apenas um entre a multidão. Mas fora dela, vendo o que se passa. E pese embora a revolta cresça em mim, mantenho-me quieto. Eu não sou nada, logo a minha revolta não é nada.

Não adianta ficar triste por ver seres humanos recordarem os seus entes mortos só num dia específico do calendário. Por fazerem disso um dia de festa. Não adianta ficar irritado por ver pessoas aproveitarem-se para fazer da morte negócio. Por conseguirem facturar bastante com isso. Não adianta ficar frustrado por gritar ao Mundo o que se passa e não me ouvirem por ser pequeno demais. Por ter que aguardar por uma credibilidade que pode não chegar para ouvirem as minhas verdades.

Mas, afinal, quem sou eu para dizer que o que digo é verdade? Um gajo crente demais para acreditar que é a Maldade e o Interesse que comandam a vida, e não o Sonho.